"A professora Dra. Carla Minervino pela iniciativa e pelo exemplo que é para o grupo".

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Pensando sobre o assunto...

No Brasil, inúmeras estratégias já foram postas em prática para diminuir a exclusão social, especialmente na escola. Os resultados, entretanto, têm sido modestos. Nenhuma proposta cientifica foi criada. A razão disso, pensamos nós, está no fato de muitos serem contra um “diagnóstico” da criança como tal. Fala-se muito da situação em que se encontram as crianças vítimas de um sistema socioeconômica cruel. Assim, os problemas estudados são os sociais, os históricos, mas a criança singular não é avaliada adequadamente. O máximo que se faz é pesquisar o que ela não sabe, mas, sobre o porquê de não saber, nada se faz. Os problemas são sempre considerados exclusivamente sociais cujo centro é a aquisição da linguagem estão sempre fora das varias considerações. Tudo se passa como se a criança não tivesse um cérebro que se constrói nas trocas do organismo com o meio (graças à sua plasticidade), e como se, na idade escolar, as perdas dos anos anteriores não precisassem d uma compensação por intermédio de práticas especiais. Pensa-se muito em horas a mais de estudo, jogos, esporte e outras práticas, mas não se pensa nas condições necessárias para que a criança possa assimilar o que lhe é oferecido. O para aquisição de qualquer conhecimento possível. A maioria das crianças vítimas do sistema socioeconômico adquiriu lacunas no processo evolutivo, e essas lacunas precisam ser preenchidas, desde, é claro, que saibamos quais são elas...


Adrian Montoya passou quatro anos numa favela de São Paulo interagindo com as crianças, que em sua maioria eram repetentes na escola e futuros candidatos ás classes “especiais”, que eram, na época, a ante-sala do crime. Trabalhou sistematicamente com crianças de sete a dez anos. Mostrou que elas, embora capazes de realizar tarefas impensáveis para as crianças de classe média (a maioria sabia cozinhar, fazer compras e cuidar de irmãos menores durante um período do dia enquanto os pais trabalhavam), não haviam construído a representação adequada das noções espaço-temporais e causais. Conheciam na prática todas essas noções, mas não podiam refletir sobre elas e, portanto não podiam construir um discurso coerente sobre aquilo que , na prática, conheciam o suficiente. Agiam muito bem no presente, mas eram incapazes de falar sobre o passado ou sobre o futuro, ou seja, não faziam referência aos fatos futuros ou aos passados, a não ser de uma pequena zona móvel do presente, inutilizável num discurso. Sobre a causalidade, a velocidade, etc., os fatos possuíam apenas indícios incoerentes. Elas sabiam o que deveriam fazer “antes” de A e o que deveriam fazer “depois” de A para conseguir B, mas sempre na ação, jamais em pensamento, jamais utilizando discurso. Tudo se passava como se o tempo fosse ainda para elas uma dimensão do espaço. A, causalidade prática era observada em seus atos, mas não chegavam a verbalizar se a,... então b. Não eram capazes de construir argumento, por mais elementar que fosse. Unicamente capazes de pensar e de falar sobre a situação em curso, elas nos pareciam prisioneiros do presente. O diagnóstico foi:dificuldade extrema de representar o mundo e as próprias ações pela aparente incapacidade de coordenação das imagens mentais no tempo, donde a impossibilidade de reconstituição, de evocação e da compreensão do liame causal, mesmo no simples nível da igualdade toda vez que eu tenho “a”, tenho “b”).


Do ponto de vista do meio social, por que aconteceria isso? Que tipo de solicitação estar-lhes-ia faltando? Sobretudo, a evocação do passado próximo ou remoto. Quase ninguém lhes dirige a palavra; não há praticamente, nesse meio, aquilo que chamamos de “trocas simbólicas” . Paulo Freire(1970) muito falou sobre a “cultura do silêncio”; foi isso que encontramos. A intervenção fazia-se necessária, contudo, antes disso seria preciso saber em que ponto da embriologia mental se encontra o problema. Nós captamos na representação, na imagem do mundo. Essa deficiência pode ser superada, a homeostasis (capacidade de um organismo de manter-se em equilíbrio apesar das perturbações do meio) pode ser conseguida. Adrian Montoya fez um trabalho de intervenção levando em conta o prejuízo dessas crianças, as características do grupo e as suas pessoais. Ao final de um ano de trabalho as crianças da pesquisa já eram capazes de estabelecer trocas simbólicas com o grupo, capazes de construir um discurso coerente, de desenhar, ler e contar histórias.


É preciso que se diga que muitas dessas crianças conseguem sair dessas amarras do presente, sozinhas. Sua capacidade de resiliência é maior, por algum motivo esporádico: o encontro com um professor que se interesse por ela, um patrão dos pais, ou mesmo um organismo, um cérebro excepcional. Mas a maioria não consegue escapar das condições desfavoráveis, não consegue crescer, não consegue inserir-se adequadamente na sociedade.


*Texto de Zélia Ramozzi-Chiarottino publicado no livro aquisição da linguagem de Ingrid Finger e Ronice Müller de Quadros. Editora UFSC. 2008


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